Por Chayenne Guerreiro | Fotos: Reprodução
Três mulheres poderiam ter uma história diferente para contar, caso os
fatos narrados tivessem acontecido após a decisão, no início desta
semana, do Supremo Tribunal Federal (STF) de não criminalizar a
interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação. O STF abriu um
precedente inédito sobre o tema, já que no Brasil, provocar aborto em si
mesma ou consentir que um terceiro provoque é crime previsto no artigo
124 do Código Penal Brasileiro, com pena de detenção de um a três anos.
Quase 15 anos atrás Luísa* viu sua vida mudar ao
engravidar, sem planejamento, do namorado de 17 anos. Sem família, apoio
e dinheiro, ela teve que recorrer a um aborto clandestino.
“Você não pode ter esse filho, porque eu não quero”, eu ouvi essa frase
do pai do meu filho, meu namorado há quase 3 anos. Quando nosso
relacionamento começou eu tinha 17 anos e ele 15. Era a pessoa que eu
tinha escolhido para casar, realmente nos amávamos. Mas esse amor foi
abalado com o atraso da minha menstruação e a descoberta que eu tinha
mais de dois meses de gestação. Fiz tudo só. O exame do laboratório, o
primeiro ultrassom.
Até hoje me lembro das palavras do médico, do som dos batimentos
cardíacos dele. Meu namorado já tinha dito que não queria ser pai, eu só
pensava: o que vou fazer da minha vida? Tinha uma família
desestruturada, os pais dele não aceitavam o nosso relacionamento e ele
não queria nosso filho. Me vi sozinha, sem o apoio de ninguém.
Aos três meses de gestação a pressão de fazer o aborto continuava.
Conversando com uma amiga, ela me disse que conhecia uma pessoa que
poderia me ¨ajudar¨, então fomos na casa dessa tal pessoa. Chegando lá,
fui recebida por uma senhora que me disse: “Não se preocupe, eu resolvo
seu problema”.
Acordei cedo e sem avisar a ninguém fui até a casa dessa senhora, onde
ela me fez tomar dois comprimidos e introduziu na minha vagina mais
dois. Mandou que eu ficasse deitada por uma hora e depois fosse para
casa e descansasse. Passei as seguintes horas sentindo minha barriga dar
voltas, era como se o meu bebê estivesse lutando para não morrer.
Dez horas depois senti um bolo saindo de mim, foi quando entrei em
desespero e gritei muito, quando me levantaram do sofá, o sangue não
parava de cair. Fui ao banheiro e sentei no vaso sanitário, foi quando
vi que o feto tinha caído na água. Entrei em desespero total, foi ali
que eu tive a certeza que tinha matado o meu filho.
Não precisei ser levada ao hospital, aos poucos o sangramento foi
diminuindo, já a dor pelo que eu tinha feito não parava de crescer.
Segui a minha vida, mas o que eu fiz nunca saiu da minha cabeça. Posso
dizer, o primeiro a ter matado o nosso filho, foi o pai”.
Aos 19 anos, Clara* recebeu o apoio da família ao
contar da gravidez. A crise no relacionamento e a pressão do namorado
favoreceram para que ela optasse pelo aborto.
“Usava anticoncepcional, mas nunca fui disciplinada com remédio.
Esquecia, tomava dois num dia só, não tinha horários. Na época eu vivia
um relacionamento conturbado, sem estabilidade emocional, mas tive uma
família que me apoiou quando soube da notícia. Meu namorado me disse:
"Não quero ser pai, mas faça o que você quiser, por mim, tira. Porém se
quiser ter, eu registro ", isso foi o que me impulsionou a praticar o
ato que considero desumano e covarde.
O aborto foi feito numa clínica. Lembro que ele pagou 3 mil reais à
vista, e eu cheguei a questionar que aquele valor era suficiente para
fazermos um enxoval simples, mas o argumento não foi suficiente para que
eu recebesse o aval do pai. A clínica aparentemente já era conhecida
por ele.
Ele que marcou a consulta, me levou e pagou por tudo. O médico usou
um método de sucção, ele informou que era um procedimento seguro,
inclusive utilizado nos países onde o aborto é permitido. Não sei se é
verdade...Mas, enfim, não tive complicações físicas, em compensação, as
consequências emocionais são irreparáveis”.
Nos casos de violência sexual, a lei autoriza que a mulher realize a
interrupção da gravidez. Teoricamente, não deve ser exigido qualquer
documento para a prática do abortamento a não ser o consentimento da
mulher. Quem sofre um estupro não tem o dever legal de noticiar o fato à
polícia. Para o aborto bastaria a palavra da mulher que busca os
serviços de saúde. Estuprada pelo companheiro após uma traição, Marina* procurou a ajuda do poder público para fazer o aborto legalmente, mas teve o direito negado.
“Conheci meu namorado no colégio aos 14 anos, quando eu fiz 18 fomos
morar juntos. Com 19 eu me envolvi com um colega do estágio e comecei a
trair esse namorado. Um dia ele descobriu o que estava acontecendo e me
esperou chegar em casa, completamente bêbado.
Assim que entrei pela sala ele me puxou pelos cabelos e disse que me
mostraria o que podia fazer comigo e que depois daquele dia eu não iria
para cama com mais nenhum homem. Mesmo com os meus gritos, ele não
parou. Naquela noite eu fui estuprada. Eu não sabia para quem eu podia
contar. Como eu explicaria que meu namorado de 5 anos tinha me
violentado?
Quem acreditaria? E mais, assim que eu assumisse a traição, quem
ficaria do meu lado? No outro dia, voltei para casa dos meus pais. Meu
ex nunca me procurou depois disso. Dois meses depois descobri a
gravidez, a única possibilidade para mim era o aborto. Eu era estudante,
ganhava uma bolsa de 400 reais e só conseguia pensar que teria que
olhar para o filho do meu estuprador pelo resto da vida.
Comecei a pensar em como faria. Já tinha ouvido relatos de amigas que
usaram o Cytotec e tiveram muitas complicações. Ao mesmo tempo não tinha
dinheiro para um aborto em uma clínica particular. Uma professora me
disse que existia um hospital público que realizava o aborto de forma
legal nos casos das vítimas de violência sexual e eu fui até lá procurar
ajuda.
Tive que passar por várias entrevistas, onde me perguntaram
incansavelmente como o estupro aconteceu, o que tinha motivado, se eu
realmente tinha sido vítima de abuso. O processo todo levou quase três
semanas. No final, eu tive o direito ao aborto negado. Aparentemente
alguém achou que eu não estivesse falando a verdade. Sai de lá
desesperada.
É difícil lembrar das horas seguintes, eu estava desesperada. Eu não ia
ter aquele filho. Cheguei em casa, peguei meu celular e notebook e
vendi para um amigo do meu irmão por 1500 reais. No centro da cidade
encontrei uma clínica onde um técnico de enfermagem administrava o
Cytotec e depois fazia a curetagem. Senti dor do início ao fim. Não
houve anestesia. No meio do processo desmaiei. Quando acordei o
enfermeiro disse que tudo tinha acontecido da forma correta e tudo que
eu conseguia sentir era alivio”.
Salvador é campeã de aborto
Na Bahia, a cada três horas acontece um aborto ilegal. Salvador é uma
das cidades de altas taxas de mortalidade materna por aborto inseguro.
Os procedimentos, feitos em clinicas de luxo ou salas comerciais, custam
de R$ 800 a R$ 5.000.
No SUS, a curetagem é o segundo procedimento mais frequente. Em 2006,
de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde, 26,7 mil baianas se
submeteram ao aborto clandestino e tiveram complicações de saúde. Os
dados mais recentes, do ano de 2007, apontam que apenas naquele ano
foram realizadas 8.387 curetagens, 699 por mês, 23 por dia e 1 a cada
hora. Atualmente, a cada 4 mulheres que se internam para dar à luz,
ocorre 1 internação para curetagem pós-aborto na cidade.
A psicóloga Lorenna Reis Oliveira, explica que o abandono dos parceiros
é determinante na decisão do aborto. “Para compreendermos as repostas
emocionais da mulher diante do aborto é preciso entender o significado
dessa gravidez para a mulher, ou seja, se existe um projeto de
maternidade para aquele momento da sua vida. O aborto é consequência de
diversos fatores que podem levar a mulher a uma decisão extrema, um
deles está relacionado a pressão dos parceiros, que por não querer
assumir o filho, acabam impondo essas condições as mulheres, que se veem
fragilizadas e sozinhas diante da situação”.
Segundo ela, a legalização do aborto diminuiria o processo traumático
que as mulheres enfrentam após o procedimento. “ As consequências
psicológicas de um aborto podem ser devastadoras para a mulher, que não
tem apoio da família, do parceiro e ainda pode sofrer com os riscos de
fazer um procedimento clandestino que pode ocasionar sua morte. Elas
estão sujeitas ao estresse pós-traumático por conta do procedimento
invasivo, doloroso e ilegal. No entanto, precisamos levar em
consideração a redução desse estresse decorrente da interrupção de uma
gravidez não desejada, onde a mulher por diversos motivos escolhe não
ter o filho”, explica.
Em entrevista ao Bocão News, a advogada Daniela
Portugal, professora de Direito Penal de Faculdade Baiana de Direito,
defendeu o direito à liberdade individual e a legalidade do aborto.
"Entendo que deva ser autorizado porque acredito que dentro da
liberdade individual de nós mulheres, cada uma tem que escolher se vai
levar para frente ou não a gestação. Não podemos impor nosso modo de
vida e nossas convicções religiosas ao outro. A gente precisa aprender a
individualidade e a liberdade do outro. Hoje vejo que muita gente é
contra o aborto e quer impedir o outro. Ou seja, não basta ter seu
posicionamento, a pessoa quer que o outro tenha a mesma opinião".
A advogada chamou atenção ainda para o que chama de "criminalização da
mulher", explicando que a punição é bem seletiva, por mais que haja
participação do homem, do marido.
“Boa parte das mulheres da classe média, classe média-alta conhece
alguém que realizou aborto. Eu arrisco dizer que nenhuma dessas amigas e
conhecidas responde a processo, pois esses abortos realizados em
clínicas caras não chegam ao conhecimento do Estado. Só chega quando
estamos diante de uma mulher pobre, em regra, negra, que tentou fazer
aborto sem acompanhamento médico. Essa mulher tem hemorragia, vai a
hospital público. Então, quando ela vai, o atendimento é negado, ou é
prestado e logo após ela é encaminhada aos órgãos públicos para
responder a processo criminal. E os parceiros, que geralmente participam
ou sabem de tudo, não respondem. Ou seja, só há a criminalização da
mulher", apontou.
*Os nomes foram modificados para proteger a identidade das vítimas
*Colaborou o repórter Rafael Albuquerque
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