MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 3 de dezembro de 2016

Aborto: entre a descriminalização e o trauma



Por Chayenne Guerreiro | Fotos: Reprodução
 
Três mulheres poderiam ter uma história diferente para contar, caso os fatos narrados tivessem acontecido após a decisão, no início desta semana, do Supremo Tribunal Federal (STF) de não criminalizar a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação.  O STF abriu um precedente inédito sobre o tema, já que no Brasil, provocar aborto em si mesma ou consentir que um terceiro provoque é crime previsto no artigo 124 do Código Penal Brasileiro, com pena de detenção de um a três anos.
 
Quase 15 anos atrás Luísa* viu sua vida mudar ao engravidar, sem planejamento, do namorado de 17 anos. Sem família, apoio e dinheiro, ela teve que recorrer a um aborto clandestino.
 
“Você não pode ter esse filho, porque eu não quero”, eu ouvi essa frase do pai do meu filho, meu namorado há quase 3 anos. Quando nosso relacionamento começou eu tinha 17 anos e ele 15. Era a pessoa que eu tinha escolhido para casar, realmente nos amávamos. Mas esse amor foi abalado com o atraso da minha menstruação e a descoberta que eu tinha mais de dois meses de gestação. Fiz tudo só. O exame do laboratório, o primeiro ultrassom. 
 
Até hoje me lembro das palavras do médico, do som dos batimentos cardíacos dele. Meu namorado já tinha dito que não queria ser pai, eu só pensava: o que vou fazer da minha vida? Tinha uma família desestruturada, os pais dele não aceitavam o nosso relacionamento e ele não queria nosso filho. Me vi sozinha, sem o apoio de ninguém.
 
 Aos três meses de gestação a pressão de fazer o aborto continuava. Conversando com uma amiga, ela me disse que conhecia uma pessoa que poderia me ¨ajudar¨, então fomos na casa dessa tal pessoa. Chegando lá, fui recebida por uma senhora que me disse: “Não se preocupe, eu resolvo seu problema”.
 
Acordei cedo e sem avisar a ninguém fui até a casa dessa senhora, onde ela me fez tomar dois comprimidos e introduziu na minha vagina mais dois. Mandou que eu ficasse deitada por uma hora e depois fosse para casa e descansasse. Passei as seguintes horas sentindo minha barriga dar voltas, era como se o meu bebê estivesse lutando para não morrer. 
 
Dez horas depois senti um bolo saindo de mim, foi quando entrei em desespero e gritei muito, quando me levantaram do sofá, o sangue não parava de cair. Fui ao banheiro e sentei no vaso sanitário, foi quando vi que o feto tinha caído na água. Entrei em desespero total, foi ali que eu tive a certeza que tinha matado o meu filho. 
 
Não precisei ser levada ao hospital, aos poucos o sangramento foi diminuindo, já a dor pelo que eu tinha feito não parava de crescer. Segui a minha vida, mas o que eu fiz nunca saiu da minha cabeça. Posso dizer, o primeiro a ter matado o nosso filho, foi o pai”.
 
 
Aos 19 anos, Clara* recebeu o apoio da família ao contar da gravidez. A crise no relacionamento e a pressão do namorado favoreceram para que ela optasse pelo aborto.  
 
“Usava anticoncepcional, mas nunca fui disciplinada com remédio. Esquecia, tomava dois num dia só, não tinha horários. Na época eu vivia um relacionamento conturbado, sem estabilidade emocional, mas tive uma família que me apoiou quando soube da notícia. Meu namorado me disse: "Não quero ser pai, mas faça o que você quiser, por mim, tira. Porém se quiser ter, eu registro ", isso foi o que me impulsionou a praticar o ato que considero desumano e covarde.
 
O aborto foi feito numa clínica. Lembro que ele pagou 3 mil reais à vista, e eu cheguei a questionar que aquele valor era suficiente para fazermos um enxoval simples, mas o argumento não foi suficiente para que eu recebesse o aval do pai. A clínica aparentemente já era conhecida por ele. 
 
Ele que  marcou a consulta, me levou e pagou por tudo.   O médico usou um método de sucção, ele informou que era um procedimento seguro, inclusive utilizado nos países onde o aborto é permitido. Não sei se é verdade...Mas, enfim, não tive complicações físicas, em compensação, as consequências emocionais são irreparáveis”.
 
 
Nos casos de violência sexual, a lei autoriza que a mulher realize a interrupção da gravidez. Teoricamente, não deve ser exigido qualquer documento para a prática do abortamento a não ser o consentimento da mulher. Quem sofre um estupro não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Para o aborto bastaria a palavra da mulher que busca os serviços de saúde. Estuprada pelo companheiro após uma traição, Marina* procurou a ajuda do poder público para fazer o aborto legalmente, mas teve o direito negado.
 
“Conheci meu namorado no colégio aos 14 anos, quando eu fiz 18 fomos morar juntos. Com 19 eu me envolvi com um colega do estágio e comecei a trair esse namorado. Um dia ele descobriu o que estava acontecendo e me esperou chegar em casa, completamente bêbado.
 
 Assim que entrei pela sala ele me puxou pelos cabelos e disse que me mostraria o que podia fazer comigo e que depois daquele dia eu não iria para cama com mais nenhum homem. Mesmo com os meus gritos, ele não parou. Naquela noite eu fui estuprada. Eu não sabia para quem eu podia contar. Como eu explicaria que meu namorado de 5 anos tinha me violentado? 
 
Quem acreditaria? E mais, assim que eu assumisse a traição, quem ficaria do meu lado? No outro dia, voltei para casa dos meus pais. Meu ex nunca me procurou depois disso. Dois meses depois descobri a gravidez, a única possibilidade para mim era o aborto. Eu era estudante, ganhava uma bolsa de 400 reais e só conseguia pensar que teria que olhar para o filho do meu estuprador pelo resto da vida.
 
 Comecei a pensar em como faria. Já tinha ouvido relatos de amigas que usaram o Cytotec e tiveram muitas complicações. Ao mesmo tempo não tinha dinheiro para um aborto em uma clínica particular. Uma professora me disse que existia um hospital público que realizava o aborto de forma legal nos casos das vítimas de violência sexual e eu fui até lá procurar ajuda. 
 
Tive que passar por várias entrevistas, onde me perguntaram incansavelmente como o estupro aconteceu, o que tinha motivado, se eu realmente tinha sido vítima de abuso. O processo todo levou quase três semanas. No final, eu tive o direito ao aborto negado. Aparentemente alguém achou que eu não estivesse falando a verdade. Sai de lá desesperada. 
 
É difícil lembrar das horas seguintes, eu estava desesperada. Eu não ia ter aquele filho. Cheguei em casa, peguei meu celular e notebook e vendi para um amigo do meu irmão por 1500 reais. No centro da cidade encontrei uma clínica onde um técnico de enfermagem administrava o Cytotec e depois fazia a curetagem. Senti dor do início ao fim. Não houve anestesia. No meio do processo desmaiei. Quando acordei o enfermeiro disse que tudo tinha acontecido da forma correta e tudo que eu conseguia sentir era alivio”.
 
Salvador é campeã de aborto
 
Na Bahia, a cada três horas acontece um aborto ilegal.  Salvador é uma das cidades de altas taxas de mortalidade materna por aborto inseguro. Os procedimentos, feitos em clinicas de luxo ou salas comerciais, custam de R$ 800 a R$ 5.000.
 
No SUS, a curetagem é o segundo procedimento mais frequente. Em 2006, de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde, 26,7 mil baianas se submeteram ao aborto clandestino e tiveram complicações de saúde. Os dados mais recentes, do ano de 2007, apontam que apenas naquele ano foram realizadas 8.387 curetagens, 699 por mês, 23 por dia e 1 a cada hora. Atualmente, a cada 4 mulheres que se internam para dar à luz, ocorre 1 internação para curetagem pós-aborto na cidade.
 
 
A psicóloga Lorenna Reis Oliveira, explica que o abandono dos parceiros é determinante na decisão do aborto. “Para compreendermos as repostas emocionais da mulher diante do aborto é preciso entender o significado dessa gravidez para a mulher, ou seja, se existe um projeto de maternidade para aquele momento da sua vida. O aborto é consequência de diversos fatores que podem levar a mulher a uma decisão extrema, um deles está relacionado a pressão dos parceiros, que por não querer assumir o filho, acabam impondo essas condições as mulheres, que se veem fragilizadas e sozinhas diante da situação”.
 
Segundo ela, a legalização do aborto diminuiria o processo traumático que as mulheres enfrentam após o procedimento. “ As consequências psicológicas de um aborto podem ser devastadoras para a mulher, que não tem apoio da família, do parceiro e ainda pode sofrer com os riscos de fazer um procedimento clandestino que pode ocasionar sua morte. Elas estão sujeitas ao estresse pós-traumático por conta do procedimento invasivo, doloroso e ilegal. No entanto, precisamos levar em consideração a redução desse estresse decorrente da interrupção de uma gravidez não desejada, onde a mulher por diversos motivos escolhe não ter o filho”, explica.
 
 
 
Em entrevista ao Bocão News, a advogada Daniela Portugal, professora de Direito Penal de Faculdade Baiana de Direito, defendeu o direito à liberdade individual e a legalidade do aborto. 
 
"Entendo que deva ser autorizado porque acredito que dentro da liberdade individual de nós mulheres, cada uma tem que escolher se vai levar para frente ou não a gestação. Não podemos impor nosso modo de vida e nossas convicções religiosas ao outro. A gente precisa aprender a individualidade e a liberdade do outro. Hoje vejo que muita gente é contra o aborto e quer impedir o outro. Ou seja, não basta ter seu posicionamento, a pessoa quer que o outro tenha a mesma opinião".
 
 A advogada chamou atenção ainda para o que chama de "criminalização da mulher", explicando que a punição é bem seletiva, por mais que haja participação do homem, do marido. 
 
“Boa parte das mulheres da classe média, classe média-alta conhece alguém que realizou aborto. Eu arrisco dizer que nenhuma dessas amigas e conhecidas responde a processo, pois esses abortos realizados em clínicas caras não chegam ao conhecimento do Estado. Só chega quando estamos diante de uma mulher pobre, em regra, negra, que tentou fazer aborto sem acompanhamento médico. Essa mulher tem hemorragia, vai a hospital público. Então, quando ela vai, o atendimento é negado, ou é prestado e logo após ela é encaminhada aos órgãos públicos para responder a processo criminal. E os parceiros, que geralmente participam ou sabem de tudo, não respondem. Ou seja, só há a criminalização da mulher", apontou.
 
*Os nomes foram modificados para proteger a identidade das vítimas
 
*Colaborou o repórter Rafael Albuquerque

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