sexta-feira, 2 de outubro de 2015

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA





         Bem pedante este título, não acha? Não se preocupe, meu campo de interesse nestas crônicas não é filosofância, limito-me a temas do quotidiano, ao alcance da maioria de nós. O título quer dizer apenas que os produtos industriais de hoje não são feitos para durar muito tempo; em cerca de cinco anos tornam-se ultrapassados, obsoletos (daí obsolescência); e são programados para isso. Por quê? Ora, porque a indústria já tem outros engatilhados para nos impingir. Comprar o novo é praticamente obrigatório, se o antigo já não funciona, ou se existe outro melhor, ou se criaram incompatibilidades do novo com o meu (que ainda me serve obedientemente).
         Esse artifício mercadológico foi inventado pela indústria há quase um século, e vem sendo aperfeiçoado de lá para cá. Você quer um exemplo? Eis uma tarefa tão fácil como procurar uma agulha num monte de agulhas. Então vamos a um muito característico – a televisão. Até meados do século XX não havia televisão, e ninguém precisava dela. Mas foi lançada com estardalhaço e muita propaganda, as pessoas compraram e se acostumaram. Quando todos se cansaram do preto-e-branco, já estava pronta a TV em cores. Mas era pequena, e logo foi substituída por outra grande. Continuavam não precisando dela, mas era melhor e já estavam acostumados. Essa TV grande ocupava muito espaço, era um trambolho, e foi substituída por outra fininha, de plasma, depois LCD, depois LED, depois 3D, com telas cada vez maiores. Continuam desnecessárias, inúteis, prejudiciais, mas todos já estão acostumados.
         Entendeu agora por que todos querem sempre uma TV novinha? Quer mais um exemplo? Não será difícil você mesmo encontrar muitos, nesse grande depósito de agulhas, além disso eu preciso deste curto espaço para tratar de outros assuntos. Sem sair deste, pois a obsolescência programada tornou-se ubiquitária. Como o seu tempo é precioso, poupo-lhe o trabalho de conferir no dicionário e informo que ubiquitário significa que existe em toda parte.
         Você já notou que os casamentos duram cada vez menos? Deveriam durar “até que a morte os separe”, mas todas as providências são tomadas ou fornecidas para eles desmoronarem diante da primeira contrariedade. A obsolescência parece programada por ambas as partes, e as leis vão atrás para chancelar o desmoronamento.
         Os antibióticos são desenvolvidos para combater infecções bacterianas. Mas as bactérias criam resistência, obrigando os laboratórios farmacêuticos ao lucrativo trabalho de descobrir substitutos; cujo preço será convenientemente bem maior, afinal eles precisam recuperar os investimentos em pesquisa.
         O extremo da obsolescência programada é o descartável, cada vez mais difundido. Se aparelhos são substituídos depois de alguns anos de uso, o descartável é usado uma única vez. Copos de plástico, por exemplo – aqueles que não resistem à menor pressão dos dedos – são considerados “muito práticos” por todos os preguiçosos do planeta, pois evitam o trabalho de lavar copos dignos desse nome. Um amigo com o qual compartilho a aversão a esses utensílios de péssima qualidade radicaliza: Eles devem ser descartados antes do uso. Você se sentiria honrado numa casa onde lhe oferecessem vinho ou whisky nesses copos?
         Talvez você não tenha notado que os governos, no sistema político republicano, já começam com prazo de validade estabelecido: quatro ou cinco anos. Isso nada mais é do que obsolescência programada. No período eleitoral, a autopropaganda dos candidatos promete maravilhas. Depois de eleitos, as maravilhas prometidas não comparecem, e o jeito é os novos candidatos despertarem nos eleitores a apetência por novas maravilhas, cujo destino será o mesmo. E assim vão nos embrulhando sempre, e cada vez mais.
         Na vigência de um sistema político-eleitoral dimensionado para curta duração dos governos, não espanta o que declarou um personagem de prestígio internacional numa reunião de cúpula, para resolver problemas político-econômicos graves: Todos sabem o que precisa ser feito; o que ninguém sabe é como ganhar as eleições depois. Outro personagem o confirma com uma distinção muito acertada: O rei pensa na próxima geração, o político pensa na próxima eleição.
No sistema em que a renovação do governo se dava dentro de uma mesma família, a visão dos governantes ia muito além, abrangia umprojeto de civilização. Eram todas famílias seculares, não se desmoronavam nem com fortes tempestades, daí a estabilidade invejável dos países.
         Obsolescência programada na indústria, na família, em festas, na política, em tantos outros campos, tudo faz parte de uma grande decadência programada de toda a sociedade. Compare tudo isso, junte todos os pontos, avalie cada artifício obsolescente que nos despejam no caminho, e lhe será fácil constatar que nossa trajetória está muito distante do verdadeiro progresso, que deve ser contínuo e na mesma rota.
(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim
 

 
 
 
Fonte: Agência Boa Imprensa – (ABIM)

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