Bem pedante este título, não acha? Não se preocupe, meu campo de
interesse nestas crônicas não é filosofância, limito-me a temas do
quotidiano, ao alcance da maioria de nós. O título quer dizer apenas que
os produtos industriais de hoje não são feitos para durar muito tempo;
em cerca de cinco anos tornam-se ultrapassados, obsoletos (daí
obsolescência); e são programados para isso. Por quê? Ora, porque a
indústria já tem outros engatilhados para nos impingir. Comprar o novo é
praticamente obrigatório, se o antigo já não funciona, ou se existe
outro melhor, ou se criaram incompatibilidades do novo com o meu (que
ainda me serve obedientemente).
Esse artifício mercadológico foi inventado pela indústria há quase um
século, e vem sendo aperfeiçoado de lá para cá. Você quer um exemplo?
Eis uma tarefa tão fácil como procurar uma agulha num monte de agulhas.
Então vamos a um muito característico – a televisão. Até meados do
século XX não havia televisão, e ninguém precisava dela. Mas foi lançada
com estardalhaço e muita propaganda, as pessoas compraram e se
acostumaram. Quando todos se cansaram do preto-e-branco, já estava
pronta a TV em cores. Mas era pequena, e logo foi substituída por outra
grande. Continuavam não precisando dela, mas era melhor e já estavam
acostumados. Essa TV grande ocupava muito espaço, era um trambolho, e
foi substituída por outra fininha, de plasma, depois LCD, depois LED,
depois 3D, com telas cada vez maiores. Continuam desnecessárias,
inúteis, prejudiciais, mas todos já estão acostumados.
Entendeu agora por que todos querem sempre uma TV novinha? Quer mais um
exemplo? Não será difícil você mesmo encontrar muitos, nesse grande
depósito de agulhas, além disso eu preciso deste curto espaço para
tratar de outros assuntos. Sem sair deste, pois a obsolescência
programada tornou-se ubiquitária. Como o seu tempo é precioso, poupo-lhe
o trabalho de conferir no dicionário e informo que ubiquitário
significa que existe em toda parte.
Você já notou que os casamentos duram cada vez menos? Deveriam durar
“até que a morte os separe”, mas todas as providências são tomadas ou
fornecidas para eles desmoronarem diante da primeira contrariedade. A
obsolescência parece programada por ambas as partes, e as leis vão atrás
para chancelar o desmoronamento.
Os antibióticos são desenvolvidos para combater infecções bacterianas.
Mas as bactérias criam resistência, obrigando os laboratórios
farmacêuticos ao lucrativo trabalho de descobrir substitutos; cujo preço
será convenientemente bem maior, afinal eles precisam recuperar os
investimentos em pesquisa.
O extremo da obsolescência programada é o descartável, cada vez mais
difundido. Se aparelhos são substituídos depois de alguns anos de uso, o
descartável é usado uma única vez. Copos de plástico, por exemplo –
aqueles que não resistem à menor pressão dos dedos – são considerados
“muito práticos” por todos os preguiçosos do planeta, pois evitam o
trabalho de lavar copos dignos desse nome. Um amigo com o qual
compartilho a aversão a esses utensílios de péssima qualidade
radicaliza: Eles devem ser descartados antes do uso. Você se sentiria honrado numa casa onde lhe oferecessem vinho ou whisky nesses copos?
Talvez você não tenha notado que os governos, no sistema político
republicano, já começam com prazo de validade estabelecido: quatro ou
cinco anos. Isso nada mais é do que obsolescência programada. No período
eleitoral, a autopropaganda dos candidatos promete maravilhas. Depois
de eleitos, as maravilhas prometidas não comparecem, e o jeito é os
novos candidatos despertarem nos eleitores a apetência por novas
maravilhas, cujo destino será o mesmo. E assim vão nos embrulhando
sempre, e cada vez mais.
Na vigência de um sistema político-eleitoral dimensionado para curta
duração dos governos, não espanta o que declarou um personagem de
prestígio internacional numa reunião de cúpula, para resolver problemas
político-econômicos graves: Todos sabem o que precisa ser feito; o que ninguém sabe é como ganhar as eleições depois. Outro personagem o confirma com uma distinção muito acertada: O rei pensa na próxima geração, o político pensa na próxima eleição.
No sistema em que a renovação do governo se dava dentro de uma mesma família, a visão dos governantes ia muito além, abrangia umprojeto de civilização. Eram todas famílias seculares, não se desmoronavam nem com fortes tempestades, daí a estabilidade invejável dos países.
Obsolescência programada na indústria, na família, em festas, na
política, em tantos outros campos, tudo faz parte de uma grande
decadência programada de toda a sociedade. Compare tudo isso, junte
todos os pontos, avalie cada artifício obsolescente que nos despejam no
caminho, e lhe será fácil constatar que nossa trajetória está muito
distante do verdadeiro progresso, que deve ser contínuo e na mesma rota.
(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim
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