Jessé Soares, de 25 anos, vendia bombons no ônibus para pagar contas.
Com ajuda de amigos e professores, jovem pode se dedicar aos estudos.
Jessé
Soares fez uma campanha no Facebook para conseguir doações que devem
permitir seus esstudos até 2014 (Foto: Luana Laboissiere/ G1)
Até outubro passado, o estudante universitário Jessé Soares vendia bombons regionais nos ônibus de Belém para poder pagar as despesas da faculdade de medicina, que ele cursa na Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Porém, o tempo que o jovem gastava nos coletivos acabava significando
menos horas de estudo, e ele se viu diante de um dilema: conseguir
dinheiro para pagar as contas ou concluir o curso. A solução veio
através das redes sociais: após uma campanha no Facebook, Soares
conseguiu arrecadar dinheiro suficiente para deixar a atividade
informal, pelo menos até o início do próximo ano.
Jovem divulgou uma foto sua com a mensagem
'Jessé Soares: estudante de medicina e vendedor
de rua" (Foto: Jessé Soares / Arquivo pessoal)
“Cheguei em casa bem triste, preocupado com as reprovações no curso
porque precisava estudar, mas tinha que ter pelo menos o dinheiro do
ônibus para ir à aula, e isso quem me garantia era a venda dos bombons.
Na frente do computador, pensei ‘Poxa, tem tanta gente que usa o
Facebook para falar besteira...mas eu tenho uma necessidade e vou pedir
para que as pessoas me ajudem a continuar estudando, nem que seja para
me doarem R$ 1”, conta Soares.'Jessé Soares: estudante de medicina e vendedor
de rua" (Foto: Jessé Soares / Arquivo pessoal)
O apelo do universitário paraense logo se multiplicou na web. “Até umas três da madrugada fiquei recebendo mensagens pelo celular e atendendo ligações de gente interessada em doar, pessoas de vários lugares do Brasil querendo ajudar. Quando fui dormir me espantei com 13 mil compartilhamentos, isso sem falar as ‘curtidas’”, relata.
Segundo o jovem, o valor levantado com as doações será suficiente para que ele siga com dedicação exclusiva à universidade pelo menos até o início de 2014. Além do dinheiro, Soares recebeu a proposta de um professor para que ele se matricule, sem custo, em um curso preparatório para ingressar na residência médica após a formatura, prevista para junho de 2015.
Primeira aprovação de Jessé foi no curso de física
(Foto: Jessé Soares / Arquivo pessoal)
Em busca do sonho(Foto: Jessé Soares / Arquivo pessoal)
Soares nasceu em Limoeiro do Ajuru, cidade com 25 mil habitantes localizada no nordeste do Pará, perto da ilha do Marajó. Ele conta que passou mais da metade dos seus 25 anos no município, completando o ensino médio graças ao esforço da mãe, agente comunitária de saúde, e do pai, carpinteiro. Como outros ribeirinhos, Soares aprendeu a pescar, colocar armadilhas no rio para capturar camarões, subir no açaizeiro, e as técnicas da marcenaria para produzir móveis e utilitários.
Mas a vida ribeirinha não era o objetivo do rapaz, e ele sabia que, para continuar estudando, precisaria atravessar o rio até a capital paraense. “Cheguei em 2007 e corri atrás de concursos de bolsa em cursinhos para me preparar para o vestibular. Ia a pé para a escola, e quando conseguia ‘bicos’, ajudava um tio meu a colocar forros de PVC em casas, por isso, estudava à noite e na madrugada”, afirma.
Ao acessar as notas, percebeu que teria pontuação para ser aprovado em um dos cursos universitários mais concorridos entre os vestibulandos. “Minha namorada na mesma época tentou medicina e não passou. Um grande amigo meu também estava na batalha, e não conseguiu. Eles me diziam para investir nessa mudança, já que eu era bom não só com os números, também dominava a biologia”.
Decidido, Soares alternava os turnos entre as aulas na universidade, o cursinho e os trabalhos temporários. Porém, estava sem dinheiro quando as inscrições foram abertas para o vestibular 2009. “Liguei para a minha mãe lá em Limoeiro e perguntei: ‘Mãe, tu queres ter um filho médico? Preciso de R$ 88 para me inscrever no vestibular da Uepa’”. Emocionada, a mãe adiantou que não tinha o valor, mas que iria emprestar de alguém para realizar o sonho compartilhado por ela, a namorada e o amigo do filho.
O início do ano de 2009 foi de alegria para o rapaz e sua família, após ser aprovado, aos 20 anos, em medicina nas universidades Federal do Pará (Ufpa) e Estadual do Pará (Uepa). Com o benefício do seguro-defeso para pescadores da época em que exercia o ofício, comprou um pequeno computador, um isopor que servia como de geladeira, um fogão de duas bocas e mudou-se para um quitinete no bairro do Guamá. A rotina no campus da Uepa, uma novidade para o rapaz acostumado a trabalhos temporários, foi fundamental para que Soares percebesse sua nova vocação.
Jessé viu uma fonte de renda informal nos ônibus
de Belém (Foto: Luana Laboissiere/ G1)
Apertando o cintode Belém (Foto: Luana Laboissiere/ G1)
Com orçamento sempre no limite, Soares buscava alternativas para complementar o pouco dinheiro que os pais enviavam. Inscreveu-se em um edital da universidade para concessão de bolsas de permanência a alunos com poucos recursos. Selecionado, garantiu R$ 355,55 por seis meses e a prorrogação do benefício em alguns períodos ao longo de cinco anos de curso.
No mesmo ano, a namorada dos tempos de cursinho ficou grávida da primeira filha do casal. Com isso, aumentaram os gastos, e Soares ganhou mais uma razão para batalhar. “Houve um dia em que eu fiquei tão desesperado com toda a situação, que desci do ônibus na Praça da República e fiquei ali, parado, querendo uma resposta. Nisso um vendedor de bombons veio na minha direção, e eu o parei, comprei um bombom e puxei papo para saber como fazia, onde comprava e ele topou me ensinar. Encontrei, finalmente, uma saída”, detalha.
Logo o aluno passou a carregar consigo, além dos livros, uma bacia plástica com centenas bombons de sabores regionais, comprados a R$ 0,30 a unidade e vendidos a R$ 0,50. No fim das aulas, subia nos coletivos que circulam na região metropolitana e cumpria uma jornada que iniciava às 17h e ia até 22h. O lucro de cada noite de trabalho era pequeno: R$ 16, mas fundamental para sustentar a família e os estudos.
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Em uma das aulas, a bacia com bombons chamou a atenção de José Ribamar da Costa Souza, professor de fisiologia de Soares. O médico sempre via o aluno com os produtos, e resolveu comprar um doce. “Foi quando ele retrucou ‘Poxa, professor, só um? Eu preciso vender porque é desse dinheiro que consigo me manter no curso, que paga meu ônibus, meu estudo’. Fiquei surpreso e comprei quase todos, distribuí para os alunos e me tornei a comprador assíduo”, relembra o professor.
Aos 63 anos, o docente confidencia que aquele momento resgatou um pouco da história da própria vida. “A sinceridade dele me emocionou. Eu também fui um aluno carente. Perdi meu pai aos 4 anos, e éramos só minha mãe e três filhos em uma casa humilde no bairro de São Brás. Minha mãe era técnica de enfermagem e fazia os maiores sacrifícios para dar de comer à gente, e nem sempre dava certo. Entrei no curso de medicina da UFPA em 1973, e durante quase todo o curso ia para as aulas andando, pois não sobrava para pegar uma condução, que dirá comprar uma bicicleta. Muitas vezes passava o dia na universidade sem ter o que comer”, completa.
Novos desafios
Com a chegada da segunda filha, o ritmo de vendas precisou crescer. Para aumentar o lucro, o rapaz aprendeu a produzir os bombons, diminuindo custos. A estratégia de marketing também teve de ser aprimorada: Soares recebeu dicas de outros vendedores para garantir mais vendas. “Eu sou muito tímido e não tinha a lábia do bom vendedor, e aí eles me diziam para contar que eu era estudante de medicina que venderia mais, que era o meu diferencial”, confessa.
Estudante conta que, apesar de nunca ter reprovado
na escola, sentiu a venda de bombons prejudicar
seu desempenho na faculdade
(Foto: Luana Laboissiere/ G1)
As vendas aumentaram, o negócio ia bem, mas o mesmo não ocorria com as
notas do acadêmico. Devido ao fato de não frequentar todas as aulas e
não ter tempo para estudar o suficiente para as provas, vieram as
primeiras notas baixas e as reprovações nas disciplinas, fatos até então
inéditos em uma trajetória escolar de notas altas.na escola, sentiu a venda de bombons prejudicar
seu desempenho na faculdade
(Foto: Luana Laboissiere/ G1)
"Nunca reprovei na minha vida escolar. Doeu muito, chorei mesmo... porque parecia que eu estava vendo o meu sonho se distanciando. Se as coisas continuassem do jeito que estavam, como iria concluir? Medicina é um curso que não se ‘empurra com a barriga'. O que ficava martelando na minha cabeça era que precisava dar um jeito, só não sabia como. A única coisa que sabia, na verdade, é que não iria abandonar o curso", conta.
O negócio, a família e os estudos eram conduzidos com malabarismos e com o apoio de alguns professores e dos próprios colegas de turma. "Apesar de ele ter faltado bastante, sei o quanto o Jessé é um aluno bom, empenhado e que trata muito bem os pacientes. O que puder fazer para ajudar, estender um prazo, dar uma chance de apresentar novamente um trabalho, sei o quanto é importante", conta a professora de ginecologia, a médica Luciane Abrahaão.
Deslocamento do estudante envolve mototaxi, ônibus
e uma hora de barco (Foto: Luana Laboissiere/ G1)
No caminho feito de tantos obstáculos, um novo se somou à rotina já
intensa. Desde julho, o estudante, a esposa e as crianças passaram a
habitar uma casa popular, graças a um convênio governamental, no bairro
Zita Cunha, em Barcarena, município localizado no nordeste do Pará. A
partir de então, às 4h Jessé aguarda o mototaxista que o levará até o
porto da cidade, onde se põe a esperar a embarcação que zarpa às 5h e
que o levará, uma hora depois, até um porto no mercado Ver-o-Peso, em
Belém. A viagem de barco é gratuita para estudantes que comprovem sua
matrícula. Ali, ele entra no ônibus que o levará, 40 minutos depois, à
universidade, onde as aulas iniciam às 7h. A jornada encerra pouco
depois da meia-noite, em casa, quando beija as duas meninas, de 7 e 3
anos, que já dormem.e uma hora de barco (Foto: Luana Laboissiere/ G1)
Determinação
O jovem franzino se mostra maior que as adversidades que surgem diante dele: "Nenhuma dificuldade é maior que o sonho. Eu entendo que na minha vida não houve dificuldades, houve desafios, e os desafios estão aí para que possa vencê-los. Por mais que seja desgastante, cansativo, com força de vontade a gente dá conta. Vai dar certo, já está dando certo”, conclui.
Jessé e os alunos da turma D de medicina da Uepa
(Foto: Thais Rezende/ G1)
A persistência é motivo de admiração dos colegas de turma. “Eu e acho
que todos os alunos sempre viram como ele é esforçado. A dificuldade que
tinha para vir às aulas, e ainda cuidar da família! Mas ele sempre
esteve na batalha, procurando acompanhar a turma, apesar de tudo. Ele
superou tudo e está aqui com a gente", fala o estudante Victor
Albuquerque, 23 anos.(Foto: Thais Rezende/ G1)
O coro conta com o reforço dos professores. “O Jessé é um exemplo não só como aluno, mas de vida. É estudioso, dedicado, perseverante. Está trilhando um caminho que com toda certeza vai levá-lo a ter sucesso na carreira, ser um excelente médico”, prevê o doutor José Ribamar.
E para quem acredita que os desafios do futuro médico acabam por aí, ele afirma que já está de olho no próximo: a escolha da oncologia como especialidade médica. "O câncer é uma das doenças que desafia a medicina, com um índice de mortalidade ainda muito alto. Por isso eu quero focar na pesquisa, investir na oncogenética para ajudar a desenvolver formas de prevenção e diagnóstico mais eficientes. É um desafio é tanto”, assevera o estudante ao olhar pela janela do barco a imensidão da Baía do Guajará como quem mira o futuro.
Jessé Soares, a esposa e as filhas Ewelyn(E) e Ana Clara (Foto: Luana Laboissiere/ G1)
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