MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 25 de julho de 2013

CORPORATIVISMO MÉDICO E MISÉRIA MORAL -

 
 
Por Walquíria Leão Rego, professora titular de Teoria Sociológica da IFCH-Unicamp.
 
“As manifestações da corporação médica até agora só revelam uma coisa: trata-se de posições corporativas, estreitas, egoístas e com facetas de insensibilidade moral e social assustadoras.”
 
Habita soberana entre nós uma enorme ausência de qualquer coisa como espírito público e republicanismo. Aspecto ressaltado por todos os nossos clássicos. Imediatamente, mesmo se consideramos que o projeto foi apresentado de modo inábil, ou sem a devida discussão com a sociedade e com os movimentos sociais, a grande mídia não teceu nenhuma crítica à falta de “civic culture” dos nossos doutores. Ao contrário, em vez de se preocupar com a sorte dos sem-médicos, entrou em cena desqualificando completamente as propostas, e com isto reforçando o já poderosíssimo corporativismo médico.
 
É bom lembrar que os que tiveram o privilégio de estudar nas universidades públicas – infelizmente no Brasil ingressar em uma universidade pública, e muito mais em um curso de medicina, constitui um privilégio, e não um direito universal – tiveram seu curso pago com dinheiro de todos nós. È o povo brasileiro que paga os doutorados e pós-doutorados no exterior e o resultado deste investimento da nação foi excelente: temos ótimos médicos. A medicina brasileira não deve nada aos melhores centros médicos de excelência mundial. Contudo, no interior deste processo de formação de médicos de alta qualidade técnica se oculta uma grande tragédia. Essa medicina está concentrada nas regiões ricas do país e serve a pouquíssimos brasileiros, ou melhor, serve aos ricos.
 
Existem milhões de brasileiros cujas vozes e grandes sofrimentos ninguém ouve, pois a grande mídia não fala deles, são invisíveis, são silenciados exatamente pela sua pobreza. Estes não têm médicos. Centenas de cidadezinhas não dispõem de nenhum profissional para socorros emergenciais e para salvar vidas. Estão alijadas do sistema de saúde porque são vítimas de uma mentalidade e de uma visão de profissão elitista e individualista. Existem outras formas mais nobres de enxergar a medicina – por exemplo, a de uma organização como Médico Sem Fronteiras, que enfrenta situações mais duras em países em guerra, como o Afeganistão e outros, totalmente desprovidos de qualquer estrutura de equipamentos médicos. Salvo engano, são considerados excelentes profissionais. Mas esta é outra história.
Em uma viagem de pesquisa, nos fundões da Bahia, entrevistei uma mulher que chegara aos 50 anos sem conhecer este personagem, o médico. Passara a vida em curandeiros ou curandeiras e ingerindo as tais garrafadas “medicinais”.
Nossa tragédia neste campo não para aí. A pergunta que temos na garganta é: por que os médicos agem de forma tão desumana, se recusando a sair das grandes e médias cidades para salvar vidas e, com isto, respeitar o direito mais elementar dos homens, o direito à vida?
 
Esta questão se desdobra na constituição de uma medicina sem alma, calcada em uma ideologia absolutamente mercantil da profissão. Tal processo formativo modela a expectativa entre os jovens candidatos a médicos, que se tornam pessoas, donas de atitudes e sentimentos desprovidas de qualquer compromisso com seus concidadãos, com seu país.
Existem hospitais fechados por ausência de médicos dispostos a trabalhar neles e as populações dessas cidades têm de enfrentar viagens longas para ter acesso a uma consulta em uma cidade maior. Muitas destas travessias terminam com a morte precoce de pessoas que não suportaram a viagem. E as periferias e hiperperiferias urbanas têm a mesma carência de médicos.
Tornou-se comum aos doentes esperarem horas, às vezes dias, depois de viajar nos malfadados ônibus lotados e chegarem aos postos de saúde e não encontrarem médicos.
 
Em suma, como começar a desatar, ou para ser mais precisa com a lenda, cortar o nó górdio da ausência de médicos? Puxando algum fio, pode ser pelo caminho mais carregado de interesses particularistas, ou seja, daqueles interesses voltados à reserva de mercado e à exclusividade da pratica médica para brasileiros que não querem se deslocar dos grandes centros, portanto um profissional escasso. Isto tem um nome: chama-se manutenção de privilégios corporativos e absoluta ausência de responsabilidade moral. Começa por não se colocar uma questão simples: devolver à sociedade que pagou os seus estudos alguma dedicação a ela.
 
Muitos médicos com quem converso há anos sobre isso atribuem esta atitude ao tipo de formação profissional que as atuais faculdades de medicina fornecem aos seus estudantes, ou seja, as escolas formam mentes excessivamente voltadas para o mercado, para as especialidades mais rentáveis, e ignoram as necessidades do País e de seu povo. Como se sabe, muitos países adotam a contratação de médicos estrangeiros, uma vez diagnosticada a carência destes profissionais. Vejamos os nossos dados sobre a distribuição dos médicos pelo território nacional. Segundo o Ministério da Saúde, existe no País 1,8 médico por mil habitantes, ao passo que na Argentina a fração é 3,2; no Uruguai, 3,7; em Portugal, 3,9, e na Grã-Bretanha, 2,7. Portugal, que tem 4 médicos por mil habitantes, tem um programa de atração de médicos cubanos, hondurenhos e costa-riquenhos para atender nas regiões rurais. Dezessete por cento dos médicos que atuam no Canadá são estrangeiros; em algumas províncias, o número chega a 60%. Lá se atrai o médico sem a validação do diploma.
 

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