Mundo não mudou, mas geração atual passou a acreditar em mudanças.
Para especialistas, movimento pode 'murchar' se não esclarecer seu foco.
Na segunda, 65 mil pessoas caminharam em diversos grupos pela Zona Sul e Centro de SP, sem conflito (Foto: Caio Kenji/G1)
As manifestações contra o aumento da tarifa no transporte público que,
em duas semanas, mobilizaram centenas de milhares de pessoas não mudaram
o mundo, mas transformaram a "imaginação política" de quem saiu às
ruas, afirmou Christian Dunker, psicanalista e professor livre docente
da Universidade de São Paulo. "Todos vão voltar para casa, continuar sua
vida, com seu ônibus precário, com a polícia violenta. Isso não precisa
ser interpretado como fracasso do movimento. Isso tudo vai voltar a
acontecer, mas não somos mais quem éramos antes. Viver com essa
possibilidade de mudança é diferente de viver com a ideia de que isso
vai sempre continuar existindo", afirmou ele."É um novo movimento social, com novas características, que vão ter nas questões urbanas temas muito importantes. Novas questões geram novos movimentos", explicou Aldo Fornazieri, diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). "Como é que 65 mil pessoas se reúnem, andam por São Paulo causando transtorno, sem carro de som, sem um líder forte que todo mundo ouve, e dá certo? Isso é uma aula de tratamento da violência. Isso desarmou muito a recepção social", disse Dunker, da USP.
O psicanalista afirma que a novidade da mobilização foi o fato de uma demanda simples como a redução dos R$ 0,20 ter conseguido "albergar dentro de si um mal-estar que estava flutuante", representando uma força simbólica que não havia sido vista no Brasil.
"A gente não sabe o que vai acontecer a partir dessa transformação, que foi uma transformação dos meios, não dos fins, porque a pauta do transporte é conhecida, é antiga."
A professora Maria Otília Bocchini, da Escola de Comunicações e Artes da USP, defende que os manifestantes busquem qualificar e especificar suas demandas para que a transformação social avance sem que seja preciso reinventar a roda. "No calor da hora, com todo mundo aos gritos na rua, fica um momento difícil, mas isso é uma questão de formação política de longo prazo. É muito demorado você realmente se interessar e estudar." Ela lembra que o tema do transporte já vem desde o tempo da ex-prefeita Luiza Erundina e, além disso, não basta pressionar apenas o Executivo. "Tem lei que está no Congresso há sete anos sobre desoneração, está lá há sete anos e eles não votam. Fica clara a relação, o prefeito só pode desonerar se eles lá tiverem a lei. Não é porque todo mundo está pressionando que ele fazer uma coisa ilegal."
Foco
Maria Otília, assim como Fornazieri, afirmam que o fato de os atos terem ganhado uma dimensão de massa e uma pluralidade de bandeiras pode acabar enfraquecendo o movimento se não definir um rumo. "É fácil escrever um cartaz genérico contra a corrupção, e muito mais complicado você decidir que vai batalhar para tratar de vários aspectos da corrupção. Não tem ninguém pondo essas coisas no Facebook em pílulas. Isso coloca em xeque a capacidade de as pessoas fazerem ação continuada e procurarem uma resposta", afirmou a professora.
Ela afirma que opiniões "superficiais e generalizantes" acabam tendo pouco impacto, porque a indignação que não está embasada acaba sendo fácil demais. "É melhor até ter um foco e perder do que ter essa coisa difusa que murcha sozinha."
Segundo Fornazieri, existem "várias bandeiras difusas e por isso o movimento tende a ter uma certa continuidade, mas a durabilidade e a radicalidade dele vão ser menores". A questão, para ele, é que, apesar de vitorioso, o Movimento Passe Livre (MPL) "não politizou o movimento, e então ele vai se descaracterizando, corre o risco de se fragmentar em grupos e interesses".
Além disso, ele afirma que, como os atos receberam a adesão também de pessoas de classe média média e média alta, algumas soluções para o transporte público, como aumentar os impostos sobre a gasolina e os imóveis mais valiosos, também podem criar um racha no movimento. "Embora não tenham objetivo, os atos têm valor, que é a ideia da participação. Mas a participação pela participação não dura muito tempo. Tem que definir suas reivindicações claramente", disse.
"Como os recursos são finitos, não dá para ter tudo ao mesmo tempo agora, principalmente partindo das realidades de desigualdade que a gente parte. Mas também não é porque tem muita coisa que a gente vai desistir. O papel das pessoas mais ponderadas é justamente ajudar o governante a decidir", afirmou Maria Otília.
Futuro
Para os três docentes, é difícil calcular o rumo que o movimento vai seguir após a vitória desta quarta. A professora explica que, depois de sair de casa, a hora agora é de reflexão para quem foi às ruas. "É o momento de todo mundo refletir bastante. O impulso é muito legal, ter o impulso de mudar, mesmo que não se saiba muito bem o quê. Mas acho que precisa ter uma reflexão sobre como cada um está participando. O que pode ser muito legal agora é conseguir tirar desse impulso inicial planos duradouros", disse.
Um possível próximo passo para quem ainda tem sede de mudança, segundo ela, é deixar as ruas e ocupar os canais de participação democrática dos governos, como as assembleias do Plano Diretor da cidade. "Tem pessoas organizadas participando, são uma forma de a pessoa tomar conhecimento de tudo que está acontecendo. Os canais estão abertos, quem se dispuser a ultrapassar a militância além de carregar cartaz na rua, trate de procurar os canais, porque eles existem."
Como o MPL já existia antes do reajuste mais recente, Fornazieri, da FESPSP, lembra que, da parte do grupo que organiza o movimento de base nas periferias da cidade, a luta pelo transporte público de qualidade e com tarifa zero vai continuar.
O psicanalista Christian Dunker diz que não há a necessidade de manter as ruas ocupadas com frequência para promover a formação política dos jovens. "cada geração teve a sua formação. Eu tive a Diretas Já, depois vieram os caras pintadas. Agora é essa movimentação. Basta uma, uma por geração."
Ele cita o filósofo Slavoj Zizek para explicar que dificilmente os seis grandes atos promovidos contra o aumento da tarifa em São Paulo, e os demais protestos pelo Brasil, vão produzir manifestantes engajados 24 horas por dia. "Ninguém quer uma vida de revolucionário, entregar o seu precioso tempo para permanentemente estar às voltas com as transformações sociais. Mas a gente quer que isso seja possível. Sentir que, diante do insuportável, diante do pior, a gente tenha algum caminho para onde ir ou saiba mais ou menos o que fazer."
A experiência social depende de como a gente interpreta as nossas ilusões, as nossas esperanças, coisas que a gente sabe que não vão acontecer. Conforme a gente olha para isso, nossa imaginação política muda, pequenos atos.
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