MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Projeto estuda e divulga os segredos dos botos-cinza de Cananéia, SP


Há mais de 30 anos biólogos estudam e tentam preservar a espécie.
Ações de educação e de conscientização fazem parte do projeto.

Mariane Rossi Do G1 Santos

Pesquisadores realizam atividades para incentivar a preservação do boto cinza (Foto: Mariane Rossi/G1)Pesquisadores realizam atividades para incentivar a preservação do boto cinza (Foto: Mariane Rossi/G1)
Navegar em um barco e avistar golfinhos em seu entorno é um privilégio para moradores e turistas que passam pelo Lagamar, um complexo estuarino em Cananéia, no litoral sul de São Paulo. Há mais de 30 anos, um grupo de pesquisadores luta para preservar o bem estar da espécie e do ecosistema, para garantir que essa cena não se torne uma mera lembrança do passado.
As pesquisas sobre a espécie começaram em 1981, quando o biólogo Emygdio Monteiro Filho chegou na Ilha de Cananéia e passou a observar o dia a dia dos boto cinzas que vivem na região. Nos anos 90, os trabalhos foram crescendo e o barco ‘Lobo Marinho’ passou a ser utilizado. "Desde o início a gente dependeu muito da comunidade local. Nós não tínhamos dinheiro nem para combustível, nem para o barqueiro. O trabalho era todo voluntário. Os pesquisadores vinham, desenvolviam suas pesquisas e, às vezes, usavam o barco até como alojamento”, conta a pesquisadora Lisa Vasconcellos de Oliveira.
Já em 1997, foi fundado o Instituto de Pesquisas de Cananéia (Ipec), uma organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que desenvolve projetos de pesquisa científica em prol da conservação do meio ambiente. Dois anos depois o Projeto Boto Cinza foi registrado, como sendo o primeiro projeto, dentre os seis que são coordenados pelo Instituto atualmente. Com o passar dos anos, foi criado um grupo de pesquisadores voltados para o estudo do boto cinza. Eles criaram cursos para levar mais conhecimento aos moradores da região e os estudantes da área de biologia marinha, além de ser uma forma da ONG se auto-sustentar.
Esqueleto de boto cinza exposto em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)Esqueleto de boto cinza exposto em Cananéia, SP
(Foto: Mariane Rossi/G1)
Em 2001, a 1ª base de apoio do IpeC foi inaugurada com o nome ‘Casa Rosada’, por conta da cor do imóvel. Dois anos depois, eles mudaram de sede. No ano passado veio a grande conquista do IpeC. O Projeto Boto Cinza foi selecionado como 1º do Estado de São Paulo e recebeu o patrocínio da Petrobras.
Com mais investimento foi possível ampliar todos os projetos. Atualmente, eles contam com o Projeto Tartarugas, que analisa as espécies na região, Projeto Aves, que estuda os pássaros como fragatas e guarás, Projeto Resgate, que ajuda os animais encontrados encalhados nas praias, o Projeto Carnívoros, que trabalha com animais selvagens, e o Ponto de Cultura ‘Caiçaras’, que valoriza a cultura da região.
Boto-Cinza
De acordo com a coordenadora científica do projeto, Letícia Quito, o boto cinza também pode ser chamado de golfinho. A nomenclatura usada depende da região do país. "Ele é um mamífero aquático, ou seja, ele é dependente do mar e pode ser encontrado somente no Oceano Atlântico, de Santa Catarina até Honduras. Em geral, o pessoal associa o boto aos animais de rio, porque a gente está acostumada a ouvir falar do boto vermelho e o boto cor de rosa, que vive na Amazônia. Então todo mundo associa que o boto é de rio e o golfinho é de mar. Na verdade, é só uma diferença na nomenclatura”, explica ela.
O Projeto Boto Cinza trabalha com a conservação da espécie sotalia guianensis e dos ecossistemas e recursos naturais de seu habitat, no caso, na área do Complexo Estuarino Lagunar, mais conhecido como Lagamar. Essa região está no maior remanescente contínuo de Mata Atlântica brasileiro e abrange o Complexo Estuarino de Iguape e Cananéia, no Estado de São Paulo, e o Complexo Estuarino de Paranaguá, no estado do Paraná. No Lagamar há cerca de 72 quilômetros quadrados de manguezal, composto por árvores com raízes expostas que ficam em um solo repleto de lama e alagadiço. Mesmo com esse aspecto estranho, é um dos ecossistemas mais produtivos do país, rico na flora e fauna, com a presença de crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves e pequenos mamíferos. No estuário há o encontro de um ou mais rios com o mar. As variações constantes nesse ambiente fazem com que poucas espécies permaneçam a vida toda no estuário, como é o caso dos botos.
Modelos de botos cinzas utilizados em atividades do projeto em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)Modelos de botos cinzas utilizados em atividades
do projeto em Cananéia (Foto: Mariane Rossi/G1)
Em Cananéia, eles nadam nos estuários que banham os manguezais e tem importante função nesse sistema, por serem considerados um dos predadores dessa cadeia alimentar. “Se você conservar o boto cinza, você acaba mantendo o equilíbrio de todo o resto do que está abaixo dele na cadeia e de todo o entorno. A nossa preocupação não é só com ele. Essa é uma das regiões mais preservadas do Brasil. O boto é uma ferramenta para atingir uma área bem maior”, explica a bióloga Letícia. Para os botos, o ambiente é propício ao desenvolvimento. O ambiente costeiro e estuarino lhes proporciona proteção contra predadores, abundância de alimento, já que comem peixes, lulas e camarões, e condições favoráveis para a criação de seus filhotes, fatores ideais para a qualidade de vida da espécie.
Segundo Letícia, esses animais têm características determinantes para a identificação. O boto cinza apresenta uma coloração acinzentada em seu dorso, uma mancha cinza na lateral e o ventre mais claro. Conforme o animal vai se tornando adulto, há uma mudança em sua coloração. “Quando eles são recém nascidos, eles têm o ventre mais rosado e a nadadeira dorsal mais clara. Conforme eles vão ficando adultos, eles vão ficando mais cinzas e a parte que era mais rosada do ventre se torna branca”, explica. Por isso, é fácil distinguir os adultos, que podem chegar a medir 2,10 metros, dos filhotes, que geralmente nascem com cerca de 1 metro. Os botos, tanto machos quanto fêmeas, podem viver até 30 anos.
Ainda segundo a bióloga, o boto cinza passa praticamente 90% do seu tempo se alimentando e buscando comida. Outro fato curioso é que os botos não dormem. “Eles vão para a superfície, ficam mais lentos, já que abaixa o metabolismo. Eles ficam na superfície por no máximo 10 segundos e, depois disso, voltam para a vida normal”, explica Letícia.
Pesquisadores realizam monitoramento dos botos cinzas em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)Pesquisadores realizam monitoramento dos botos
cinzas em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)
Para saber quantos e quais indivíduos existem na população de boto cinza no Lagamar, quais são as áreas do estuário mais utilizadas por eles e porque escolhem esses locais, há estudos por meio de observações em barcos e praias, além da captação de materiais na região onde eles vivem. Há 14 linhas de pesquisas em três grupos, que falam a respeito de diversos comportamentos do animal. Há o monitoramento de encalhes, estudos sobre a estimativa da idade de cada indivíduo, sobre o conteúdo estomacal, pesquisas ligadas a relação do boto cinza com o homem e com o turismo regional e avaliação de produtos contaminantes e de fatores que levam a morte da espécie.
Pelos primeiros estudos, os pesquisadores afirmam que há cerca de 200 indivíduos na região do Lagamar, e que esse número não variou muito desde 2001. A estimativa da densidade populacional é feita por meio de fotografias da nadadeira dorsal do boto, utilizando marcas naturais. “Em todos os nossos trabalhos temos a preocupação de ser o menos invasivos possível. Tentamos mexer e interferir o menos possível no comportamento do bicho", explica Letícia. Também foi observado que os botos usam os cercos fixos, armações artesanais utilizadas pelos pescadores locais para caçar os peixes, para encurralar os cardumes e obter alimento. Por isso, os pescadores se tornam grandes aliados dos botos, já que o animal influencia na quantidade de peixes capturados pela armadilha.
Observação do Boto Cinza impulsiona a economia
Cananéia vive da pesca e do turismo náutico, que ficou mais atrativo nos últimos dez anos com a observação dos botos-cinza em pontos estratégicos da região. Apesar de movimentar a economia de Cananéia, a preservação da espécie precisa ser levada em conta pelos responsáveis pela atividade turística na região.
O whalewatching, ou seja, a oportunidade de observar uma baleia ou golfinho em ambiente natural, faz com que muitos pescadores passem a trabalhar com o turismo principalmente nos meses da temporada de verão. O tipo de embarcação destinada a esse fim tem aumentado em Cananéia, assim como a rede hoteleira da cidade, que hoje tem a capacidade de atender 5 mil turistas. Os pescadores que passaram a oferecer o turismo náutico dizem que cerca de 50% a 60% do lucro vem de levar turistas para avistar os botos. A bióloga Letícia Quito explica que os botos cinzas da espécie sotalia guianensis, encontrados em Cananéia, são mais tímidos. “Infelizmente não da pra ver nenhum boto cinza rodopiando, como os golfinhos conhecidos como rotadores, que saltam muito. O boto-cinza é considerado mais estuarino e o rotador é mais oceânico”, esclarece.
Pessoas observam nado de botos cinzas em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)Pessoas observam nado de botos cinzas em
Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)
Um dos desafios dos pesquisadores do Projeto Boto Cinza é fazer com que os turistas, os órgãos gestores e a população local tenham consciência de que é preciso preservar a espécie para que ela continue sendo um atrativo turístico para a região. “É uma forma de trazer renda para a população. É uma atividade importante para a região de Cananéia e ela precisa ser bem ordenada para garantir que todo mundo ganhe. Que o boto continue na área e que o pessoal que opera com turismo possa continuar tendo renda a partir dessa atividade desde que ela seja feita de maneira responsável”, explica a bióloga Maura Cristófani Martins, que atua na linha de pesquisa sobre interação entre embarcações e o boto-cinza. Uma pesquisa feita por Gislaine Filla, uma das coordenadoras e biólogas do Projeto, mostrou que a valorização da atividade de observação do boto-cinza gerou para a cidade de Cananéia mais de R$ 1 milhão entre os anos de 2006 e 2007.
Ao longo dos anos, os pesquisadores notaram que há relação entre a morte dos botos cinza e a interação do homem com a vida marinha. O boto é ameaçado por conta da degradação, perda ou poluição de seu habitat, poluição sonora, colisões com embarcações ou capturas acidentais em redes de pesca.

Para tentar diminuir o número de animais mortos, vítimas da interação entre o homem e o mar, os pesquisadores desenvolvem políticas públicas a favor da preservação da espécie. Eles realizam reuniões com donos de embarcações e com a população local para explicar a lei municipal 2129/2011, que mostra as normas técnicas de conduta que devem ser seguidas na presença do boto cinza em atividades com fins comerciais como turismo, lazer e esporte náutico. Nas áreas de maior ocorrência dos animais, como na Ponta da Trincheira, em Ilha Comprida, na Praia da Itacuruça, na Ilha do Cardoso e na Baia de Trapandé, é proibida a prática de esportes náuticos, como jet sky.
Embarcação utilizada pelos pesquisadores do projeto em Cananéia, SP (Foto: Mariane Rossi/G1)Embarcação utilizada pelos pesquisadores do
projeto (Foto: Mariane Rossi/G1)
Também há cursos para os donos das embarcações conhecerem melhor as regras para a conservação do boto cinza. Quando o barco está há 500 metros do animal, a recomendação é que diminua a velocidade, há 300 metros deve-se diminuir o ruído da embarcação e há 50 metros do boto é preciso deixar o motor em ponto morto. Segundo Maura, há entre 50 e 60 embarcações na cidade que são registradas na Prefeitura de Cananéia, sem contar as particulares como lanchas e jet skis. Aqueles que participarem das aulas práticas e teóricas ganham o selo do Amigo do Boto Cinza. “Todos os donos de embarcações recebem como um incentivo. O turista que vem aqui vai saber que aquela embarcação é responsável, que conhece e está seguindo as normas de conduta. Essa embarcação passa a ser mais valorizada pelo turista que busca um serviço mais responsável”, explica a bióloga Letícia Quito.
Também há a divulgação, por meio de estandes, de como proceder diante do encalhe de animais nas praias. “A melhor forma de ajudar é não tocar, não tirar ele da praia. Na vontade de ajudar às vezes você machuca mais o bicho. É importante que a população chame pessoas capacitadas para dar um atendimento básico, para fazer o mínimo para aliviar o sofrimento do bicho. A grande maioria morre”, afirma Letícia
Educação Ambiental
Para levar o conhecimento para as futuras gerações, o Instituto de Pesquisas de Cananéia tem um núcleo de educação ambiental. A informação sobre os botos-cinza e a preservação da espécie passa por escolas, locais públicos e também forma novos pesquisadores.
O personagem Zinho, um botinho cinza, é o centro das atenções das crianças que observam as aulas do projeto nas escolas municipais de Cananéia. O Guia de Educação Ambiental “Turma do Zinho” conta com paisagens e outros personagens que representam animais da região. Assim, os alunos podem aprender mais sobre indivíduos e os ecossistemas que estão bem perto de suas casas. Em 2011, cerca de 500 alunos receberam o projeto Boto Cinza nas escolas.
Pesquisadores do projeto Boto Cinza também realizam ações de educação ambiental (Foto: Mariane Rossi/G1)Pesquisadores também realizam ações de
educação ambiental (Foto: Mariane Rossi/G1)
Nas datas comemorativas, como a Semana do Meio Ambiente, Semana de Conservação do Manguezal e Dia Mundial de Limpeza de Rios e Praias, ocorreram atividades e mutirões de limpeza. Nos eventos da cidade e na Festa do Mar, por exemplo, o IpeC arma estandes e oferece palestras com orientações. Durante a temporada de verão, o projeto abre inscrições para programas de voluntariado.
Para as comunidades que ficam localizadas em áreas mais distantes do centro de Cananéia, é realizado o Cruzeiro Educart. Os pesquisadores passam o dia todo com as famílias realizando atividades para as crianças e adultos, como quebra-cabeças, jogos de memória, pintura, confecção de carangueijos com caixas de ovos, entre outras. Eles também fazem um teatro de sombras e apresentam vídeos sobre a preservação do Lagamar. Segundo a coordenadora de Educação Ambiental, Daiana Proença Bezerra, quatro comunidades já foram beneficiadas com a ação. “Essas crianças conhecem os animais que às vezes eles vêem no quintal de casa”, diz ela. Durante as ações, os biólogos também levam réplicas de acrílico de uma família de boto-cinza, ossos de baleia, de golfinhos e até dentes de animais para que as aulas possam ser mais dinâmicas, principalmente com as crianças.
A importância de criar novos pesquisadores para estudo e disseminação da preservação do Lagamar também é uma preocupação dos biólogos. Por isso foi criado, em 2011, o programa Jovem Pesquisador.
Alunos das escolas de Cananéia foram selecionados para participar e acompanhar todas as atividades realizadas pelo projeto. A bióloga Letícia Quito explica que os jovens são bolsistas e acompanham todas as atividades que o projeto desenvolve. Eles aprendem a coletar os dados no campo e todas as linhas de pesquisa são acompanhadas. Na maioria das vezes, são jovens de 14 a 17 anos e todos tem que estar em dia com as obrigações escolares. “Cada um deles, ao participar das atividades, influenciam um grande número de jovens nas escolas. Eles passam a ser o exemplo. Trabalhando bem com esses alunos a gente consegue atingir um número grande de pessoas nas escolas. Eles passam a ser multiplicadores das informações”, diz a pesquisadora Lisa Oliveira.
Projeto em Cananéia, SP, também forma jovens pesquisadores (Foto: Mariane Rossi/G1)Projeto também forma jovens pesquisadores
(Foto: Mariane Rossi/G1)
Talita Emanoelle Oliveira de Quadros, de 16 anos, fez parte da 1ª turma. Hoje, ela ensina o que aprendeu aos novos Jovens Pesquisadores. “Eles foram até a escola e a escola indicou os melhores alunos para participar do projeto. Eu fiquei muito feliz. Eu não conhecia muito bem o IpeC e eu achei super gratificante. É um reconhecimento por você ser bom na escola e ser escolhido por esse motivo foi muito bom”, diz ela, que estuda na Escola Estadual Professora Iolanda Araújo Silva Paiva.
Talita conta que durante o ano de 2011 acompanhou os pesquisadores nas escolas com educação ambiental e, pouco tempo depois, passou a dar palestras para as crianças, começou a confeccionar apostilas com pesquisas e também ajudava os pesquisadores a coletar dados, a analisar materiais e guardar os equipamentos. “A timidez diminuiu bastante”, conta ela sobre seu desenvolvimento pessoal. Mesmo querendo ser médica ou engenheira, ela quer continuar ajudando na preservação do boto cinza de alguma forma. “Pretendo não me desligar totalmente do projeto”, diz.
Entre os jovens pesquisadores deste ano está Robson Leonardo de Paula Santos, de 17 anos, amigo de Talita. “Eu participei do programa que teve no verão. Era um trabalho voluntário e eu acabei gostando. O projeto é bom. Melhoramos também no nosso convívio com a sociedade, divulgando mais coisas para as pessoas”, diz. Ele conta que a parte mais gostosa é participar das ações de educação ambiental e divulgação do projeto. Robson, que está no 3º ano do Ensino Médio, já pensa em seguir a carreira de comunicação no futuro. “Eu gosto de jornalismo. Posso entrar na área de ecologia também, divulgando o projeto”, planeja.

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